sábado, 12 de setembro de 2009

“O Adônis Químico”: estética, uso e abuso de drogas anabolizantes

Autor: Clodoaldo Gonçalves Leme - Doutorando em Psicologia Social (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)

Resumo

A estética é a ciência do belo. O belo não em sentido usual, estrito e próprio da palavra: o objeto da estética é tudo o que influi esteticamente sobre o homem. Uma obra de Mozart evoca, indubitavelmente, o objeto da estética; um cogumelo atômico também traz, em si, uma carga potencial de impressões estéticas. Muitos incluem a arte, necessariamente, na definição da estética. Claro que ela pertence ao campo da estética, é a função estética elementar e criativa do homem. Visto, porém, que o campo da estética é muito mais amplo - e considerando que na obra de arte há elementos “extra-estéticos” -, definir estética como a filosofia, ciência ou teoria do belo (ou da beleza) e da arte pode induzir a erro. Melhor seria afirmar que a estética é a ciência do belo artístico e do belo natural, e que o belo artístico é o objeto principal da estética.

O universo abrangido pela estética em nossos dias leva, necessariamente, a repensar o “belo natural”. Será que o “belo natural” ainda existe? Se analisarmos a questão no contexto de praticantes de musculação que utilizam esteróides anabolizantes – aspirantes a uma espécie de “beleza greco-química hipertrofiada” – podemos afirmar que não. A busca pelo belo a qualquer preço, digna de um Dorian Gray do século XXI (personagem de Oscar Wilde na obra “O Retrato de Dorian Gray” (1890); simboliza de forma trágica a busca da beleza a qualquer preço. Por meio de um pacto demoníaco, o personagem consegue manter a beleza física sem, contudo, se preocupar com a própria decadência moral), implica numa trágica relação de troca entre saúde e forma física. Nesse caso, o valor estético máximo – o “corpo-objeto-do-desejo”, símbolo de virilidade, força e saúde – nada mais é do que uma representação, uma construção estética paradoxalmente produzida pela corrupção do próprio corpo.

Em nosso tempo, a aparência é um valor fundamental. Não que ela não seja importante – basta pensar nas cores dos machos e nas performances de convencimento das fêmeas ao acasalamento em muitas espécies – mas sua importância foi superdimensionada. Nada se pode falar contra a busca pela beleza corporal, mas é preciso ficar atento quando essa demanda implica em riscos à saúde do “postulante a Adônis” (personagem da mitologia grega; é apontado, desde a Antigüidade, como modelo de beleza masculina). Então, buscaremos apresentar definições e orientações que podem contribuir para uma discussão mais abrangente acerca da relação entre o modelo de beleza estabelecido em nossos dias e possíveis preços a serem pago por ele.

O comportamento sexual humano está inexoravelmente relacionado a todos os aspectos da vida do indivíduo. Tal relação é complexa, mesmo porque o observador – por mais distante que seja - não pode se desligar dela. Não é fácil delimitar com segurança onde termina o “normal” e começa o “patológico” no comportamento sexual, de forma que os clínicos têm adotado a posição cautelosa de analisar o contexto geral em que ele se expressa.

Uma abordagem recente do comportamento sexual e reprodutivo tem chamado a atenção dos pesquisadores: é a que se refere ao uso exagerado de esteróides anabólicos, drogas que produzem efeitos indesejáveis no organismo. E o abuso dos esteróides anabólicos tem ocorrido principalmente entre atletas e fisiculturistas que fazem uso de uma terapia prolongada com altas doses destas drogas com o fim de aumentar sua força e massa muscular. Na realidade, muitos atletas acreditam não ser possível competir em provas de alto nível sem a ajuda dos esteróides anabolizantes. Na esteira deste processo, os jovens também abusam destas drogas visando aumentar seu potencial de aceitação no grupo e de atração junto a potenciais parceiros sexuais.

Tanto homens quanto mulheres que fazem o uso de esteródes anabólicos em altas doses e por períodos prolongados podem apresentar, entre outras coisas, espasmos musculares, hematúria (sangue na urina), acne, edema generalizado devido à retenção de água, sangramento na língua, náuseas, vômitos e uma variedade de comportamentos psicóticos, incluindo surtos de raiva e períodos de depressão. Finalmente, esteróides anabólicos orais podem produzir câncer hepático.

Nesse sentido, a realidade sobre os esteróides anabolizantes é essa: o prejuízo pode se dar a curto, médio ou longo prazo. A casuística é rica. Dentre os casos mais recentes, podemos citar a morte de jovens no Centro-Oeste do País no decorrer do ano de 2004 (em decorrência do uso de esteróides anabolizantes de uso animal) e os casos de doping nas Olimpíadas de Atenas, entre outros, que problematizam bem a questão. Eros e Thanatos parecem estar em farmácias; em um frasco de comprimidos ou em uma ampola.

De todos esses elementos, podemos tirar algumas conclusões: a primeira se refere à existência de uma “Ditadura dos Músculos” que atinge uma faixa da sociedade, principalmente a formada por jovens do sexo masculino; para esse grupo, o reconhecimento social está diretamente relacionado à representação corporal; em nome desta representação, colocam em risco a própria saúde; assim, pode-se deduzir que se sujeitam – ainda que inconscientemente – a um processo de reificação (conversão do ser em coisa) especialmente grave, porque auto-induzido.

A segunda conclusão, de caráter filosófico, se refere à questão da relação entre o ser e o ambiente. Ainda que a ciência hesite em adotar termos como “espírito”, podemos nos questionar acerca da porção “espiritual” dos indivíduos que “se estruturam” a partir de anabolizantes. Sendo o corpo um castelo, e sendo necessário incessantemente construir ameias, muralhas e fossos, podemos nos questionar acerca dos medos de seu principal ocupante – seria ele um rei franzino, frágil ou doente? Quais seus inimigos?

A terceira e última conclusão diz respeito à relação entre o alcance da ciência e os transtornos psiquiátricos decorrentes da supervalorização do corpo. Hoje é possível comprar seios mais volumosos, aumentar o tamanho do pênis, implantar cabelos ou, mesmo, transformar radicalmente (e ritualisticamente) o corpo a partir de tatuagens, piercings e outras intervenções tão ou mais severas. O consumo de esteróides anabolizantes se insere nesse contexto. O mercado não pergunta, porém, o que pode estar por trás deste tipo de demanda. Merece peito quem precisa de peito; e quem não precisa, por que busca?

A resposta mais drástica a perguntas como essa pode estar não na cultura de massa, mas nos círculos médicos, que já identificaram transtornos psiquiátricos como a chamada“dismorfia muscular”. Nela, o indivíduo, por mais musculoso que seja, vai sempre se aperceber franzino e carente de maior envergadura – para “curar a deficiência”, apelará para qualquer meio, mesmo os que coloquem sua vida em risco.

Em resumo, podemos concluir que a questão é grave, tendendo a se tornar gravíssima na proporção em que os meios de transformação corporal sejam facilitados, que a ética científica-médica seja colocada em um plano secundário, que a sociedade exija de forma mais radical padrões corporais e que transtornos psiquiátricos sejam ocultos ou intensificados por modismos.

(Disponível em: http://www.abrapso.org.br/siteprincipal/anexos/AnaisXIVENA/conteudo/pdf/trab_completo_59.pdf Acesso em 12 de setembro de 2009)