sábado, 12 de setembro de 2009

Jogo Místico

O futebol brasileiro é cheio de crendices, superstições, simpatias, rezas e tabus. Por mais que se queira avaliá-lo com lógicas e estatísticas, o resultado do jogo do time para o torcedor fanático é graças à camisa ou cueca da sorte, à promessa para o São Jorge. Exatamente por isso, a imprensa brasileira por vezes tem dificuldade de separar as duas coisas. O misticismo e o esporte, principalmente o futebol, andam de mãos dadas para torcedores doentes, jogadores inseguros ou técnicos apreensivos.

A vitória é dos santos

O futebol foi trazido ao Brasil pelos jesuítas. Essa pode ser uma boa explicação para a enxurrada de santinhos, rezas, promessas, e outros rituais presentes nas partidas de futebol. A torcida canta hinos ao time e intercede pelos jogadores, que decidem no gramado o destino da equipe: céu ou inferno. A diversidade religiosa no futebol é vista por estudiosos como uma válvula de escape à pressão e responsabilidade que pesa sobre atletas e torcedores.

Quem explica o assunto é o professor Clodoaldo Leme, mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). Leme é graduado em Educação Física e se especializou em Treinamento Esportivo e Fitness. Atualmente é doutorando em Psicologia Social na PUC. Ao final da entrevista, é possível conferir um trecho de seu estudo, "A leitura religiosa do futebol na mídia".

Canal da Imprensa - Como se dá a relação entre religião e esporte, e os itens místicos que fazem parte do inventário esportivo?

Clodoaldo Leme - No Brasil, essa relação começa no final do século 19. Nessa época, alguns padres de colégios jesuítas vão visitar a Europa para buscar algumas atividades para os estudantes, e lá conhecem o futebol. Então eles trazem o esporte para o Brasil, embora não da mesma forma que conhecemos hoje, e começa-se a praticar o futebol dentro do colégio. Tempo depois, a modalidade é levada aos clubes por alguns dos ex-alunos do colégio. Um deles é Charles Miller, que é considerado o “pai do futebol”, mas na verdade, pois ele apenas inseriu o esporte nos clubes. Então é aí que começa a relação entre futebol e religião no Brasil. Mas as manifestações começam a ficar mais evidentes quando aumenta a rivalidade no esporte. Entre 1920 e 1930, as empresas percebem o futebol como um lazer interessante para o atleta-funcionário, e começam a ir a campo com mais freqüência. Quando as competições entre empresas começam a exigir mais responsabilidade dos atletas, eles começam a beijar santinha, fazer o sinal da cruz e agradecer a Deus. Com o tempo, aumentando a rivalidade e as exigências sobre as equipes, as manifestações aumentam mais ainda devido ao crescimento das religiões afro-brasileiras (anos 40-50). Nas décadas de 70 e 80 percebemos um aumento e, inclusive, as manifestações dos Atletas de Cristo, que surgiram em 1978. Perto dos anos 90, com a globalização, é possível perceber todo tipo de manifestação. É importante entender esse processo, pois hoje é possível perceber as várias manifestações religiosas em campo, já que trata-se de um esporte de muita competição, pois além da vitória que é decidida no gramado, existe o fator financeiro.

CI - Como você avalia a forma com que isso afeta o psicológico dos atletas?

Leme - É uma coisa complicada. A maioria dos atletas não tem noção de que, quando buscam uma religião ou divindade para ajudar a enfrentar as pressões, fazem isso de uma forma muito abstrata. Eles também não entendem que são produtos para o mercado capitalista. No trabalho, procura apenas reproduzir o que é feito, mas não questiona a razão porque é cobrado o tempo todo, já que não pode reclamar de nada. Essa falta de perspectiva e cuidado faz com que ele se apegue a uma religião. Isso é complicado para o atleta, pois acaba usando a religião como uma forma de tirar o peso que cai sobre ele. Ou seja, se perde é vontade de Deus, se ganha é vontade de Deus. Assim, jogando toda a responsabilidade para Deus, o atleta não consegue refletir e analisar seu desempenho, o que ele pode melhorar ou modificar. Se o jogador estivesse consciente do que acontece no ambiente do futebol, a interferência da religião seria positiva, mas como ele não reflete, acaba sendo uma banalização, e isso não é válido para a vida do atleta.

CI - Então a responsabilidade e pressão de conseguir bons resultados seria um dos motivos pelos quais os atletas buscam o “divino”?

Leme - Sim, é o principal motivo. Você pode perceber isso quando chegam as finais de campeonatos. Os atletas podem chegar ao céu ou ao inferno, ou seja, serem campeões ou serem rebaixados. As manifestações começam a se intensificar porque não há controle sobre a partida. O ambiente do futebol é de extremo risco. Para chegar ao nível profissional o atleta tem que abrir mão de tudo: estudo, cursos profissionalizantes, família. E quando consegue chegar ao topo os riscos continuam. Ele precisar estar bem tecnicamente, fisicamente e emocionalmente, tem que ser completo. Esses e outros desafios o motivam a procurar uma religiosidade, como forma de encontrar conforto e respostas. Mas não é porque está centrado em Deus que ele vai mudar seu comportamento em campo. Muitos dos Atletas de Cristo, católicos e evangélicos também continuam agressivos, usam Deus para contextualizar o momento de tensão que vive. É nas situações de stress e risco maior que as manifestações de acentuam.

CI - Até onde é saudável essa relação entre religião e esporte?

Leme - Seria saudável se ele não usasse a religião somente na busca pelo conforto, mas se ele refletisse sobre o ambiente que vive. Se for usada apenas para justificar um erro ou uma boa atitude dele, não é válida essa relação. O Kaká, por exemplo, fala de Deus a todo o momento. Já li estudos que apontam que, ou ele é uma pessoa alienada, ou é também é corrompido, pois não se posiciona quanto à todas as acusações judiciais contra a Igreja Renascer. O futebol é um ambiente que não permite qualquer autonomia, pois a qualquer atitude do jogador, ele é julgado pela torcida, pelo técnico e até pela mídia. Caso ele decida se rebelar, está fora. Este é o prejudicial da religião, não permite que eles reflitam sobre o que está acontecendo no ambiente.

CI - E quanto aos torcedores, a fé também potencializa o otimismo deles com o esporte?

Leme - Acredito que sim, é a mesma coisa que o atleta. Tanto é que, em partidas decisivas, o torcedor marca presença com santinhos, fazendo o sinal da cruz, orando para Santo Expedito, pagando promessas, e até fazendo cultos especiais com o pastor. Eles entoam hinos para trazer uma benção especial. A torcida do Fluminense canta a música "benção João de Deus", usada todas as vezes que o time está num momento difícil. Isso virou uma rotina. A prática é a mesma que a do atleta, a diferença é que eles não usam Deus para justificar os resultados do time. Se a equipe perde, eles responsabilizarão a equipe.

CI - Pode-se dizer que alguns torcedores transformaram seus times em seu objeto de devoção?

Leme – Em todas as casas católicas, por exemplo, é fácil encontrar um santo. Já alguns torcedores veneram a equipe de futebol, o atleta. Mas esse atleta tem um prazo de validade: ele é venerado enquanto está produzindo. Em muitas casas e bares podemos encontrar quadros de times, o que nos leva a concluir que a religião da pessoa é o futebol, porque ele deposita toda a confiança nisso. Na Argentina há um caso interessante. Foi montada uma igreja chamada Maradoniana, onde prestam culto ao jogador Maradona. A Igreja funciona num bar, o altar tem uma foto do Maradona, e o calendário deles é dividido no ano do nascimento do jogador, A.D. e D.D. (antes e depois de Diego).

CI - Como se materializa essa busca pelo sobrenatural no gramado?

Leme - No gramado é bem explícito, é fácil de perceber. O jogador já entra em campo com o pé direito, pede a benção e faz o sinal da cruz. Se consegue um gol ele aponta a mão para cima. A torcida também recorre aos santos, leva imagens, bandeira de Nossa Senhora Aparecida, ou com a frase “Deus é fiel”. Os atletas andam com faixa às vezes, agradecendo pela vitória. O estádio é rodeado de manifestações. E não é só no momento do jogo, antes de entrar no campo, os atletas costumam orar. Os católicos rezam Pai Nosso e Ave Maria, os evangélicos só o Pai Nosso. O roupeiro do clube, que leva o uniforme para a equipe, traz um santo, para o qual farão uma oração especial. É um ambiente totalmente cercado de elementos religiosos.

CI- Em sua pesquisa, o senhor desvenda a função dos hinos das equipes, a “consagração” dos atletas, e outras simbologias. Explique qual foi a sua constatação.

Leme - Percebi que, quando o atleta entra em campo, a torcida gritar o nome de cada um, e existe uma música para cada um.

Diferente de outros países, o Brasil não tem um herói, ou alguém que desempenhe um papel semelhante. Por isso, o povo brasileiro acaba canalizando essa função para os destaques do esporte. Como o futebol é a maior fonte de alegria da população, o heroísmo é perceptível nesta modalidade. Mas como vivemos no sistema capitalista, tais atletas só são importantes para o clube e a torcida até o momento que estão produzindo, depois são descartados. Apenas alguns conseguem deixar marcas, e são lembrados até hoje. Os descartados, nunca mais terão seu nome cantado pela torcida, ou seja, já foram mandados para o inferno.

CI- Essas e outras demonstrações religiosas são destaque na maioria das transmissões. É correto a mídia dar destaque a essas manifestações?

Leme - A mídia dá destaque ao que o povo vê. Ao destacar o aspecto religioso, como este está ligado à moral e à ética, isso trará destaque. É ótimo para a imprensa associar uma vitória a alguma imagem religiosa, pois ela está preocupada com a audiência que vai ganhar com isso. Não é uma questão de estar errado ou não, é uma questão de vender a notícia. E a maneira mais fácil de vender a notícia é dramatizando. Você dramatiza dizendo que foi “um jogo de vida ou morte”, “entre o céu e o inferno”, ou que “Deus abençoou”. Como se trata da uma questão ética, outra coisa que interfere é o posicionamento de cada veículo. Nas finais de um campeonato brasileiro, a Rede Record, ligada à Igreja Universal, não transmitia a oração dentro do campo. Tirava de foco da oração, e falava sobre outro assunto. Já a Rede Globo fazia questão de mostrar esse momento.

A leitura religiosa na mídia

Detectei em meu estudo que a presença de "notícias do futebol ligadas ao sobrenatural" nos meios de comunicação são mais evidentes em fases finais de campeonatos, onde as equipes podem alcançar o "Céu", ou seja, o título de campeão (ou as melhores classificações); o "Purgatório" das classificações intermediárias, que não rebaixam o clube, mas que também não agradam a torcida; e o "Inferno", representado pela queda de divisão ou pela perda de um título. Percebi também que ações diferenciadas, incomuns, de atores do meio futebolístico, são utilizadas pela mídia como elemento de aproximação face ao universo religioso – nesse caso, certas atitudes se tornam "pecados", certas vitórias "milagres" e certos indivíduos, "santos" (o melhor exemplo é o goleiro do Palmeiras no ano de 1999, quando a equipe conquistou a Copa Libertadores da América: "São" Marcos).

Referente ao imaginário popular e às preces dos atletas, vale ressaltar que o Brasil é um país de crenças diversificadas - participam do mesmo jogo católicos, evangélicos etc. Há uma grande relação com o transcendente, e isto é uma estimulação benévola na visão de muitos participantes do futebol. Todos pedem e agradecem: um ganha, outro perde. Se não houver uma fé ingênua, algo de bom há de ser extraído de qualquer resultado, principalmente da derrota, onde as crises e as buscas por explicações são maiores. O fator "diversidade religiosa" nos campos de futebol é confirmado por dados obtidos na minha pesquisa referentes à afiliação do indivíduo a alguma religião e também a denominação religiosa com que ele mantém vínculo. Sobre a relação com o transcendente ser um estímulo benéfico, mesmo os que acham que não há uma ajuda direta consideram, indiretamente, que ela pode influir positivamente em alguma esfera.

Também não há dúvidas sobre a importância dos pedidos de orações e agradecimentos diante das incertezas dos resultados, pois, quando se aumenta a pressão em favor de se atuar frente às situações de risco, os integrantes de comissão técnica e atletas fazem seus pedidos e, depois do desfecho da situação, seus agradecimentos. Nas derrotas, os indivíduos descarregam seus medos e culpas diante de sua crença, assim como buscam explicações e orientações com os respectivos líderes espirituais, pois o risco é um problema externo e interno no ambiente em que é percebido, e suas conseqüências não podem ser ignoradas, visto que uma coisa condiciona a outra.

O risco existe dentro e fora das "quatro linhas" e, com a existência de tantos riscos, a busca de conforto "divino" se torna uma regra. Por fim, o que determina o resultado de uma partida é a combinação dos fatores: técnico, tático, físico e emocional. Quem estiver melhor vence. A crença ajuda e muito, mas não adianta "crer" e não treinar. Um fator completa o outro, lembrando que é impossível de provar que "um" tenha mais fé que o "outro"; isso é subjetivo.

(Disponível em: http://www.canaldaimprensa.com.br/canalant/87edicao/jogo_aberto1.htm Acesso em 12 de setembro de 2009)