O mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP não tem dúvidas. Futebol e religião sempre andaram juntos. Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, o autor da dissertação intitulada É Gol! Deus é 10 - A Religiosidade no Futebol Profissional Paulista e a Sociedade de Risco aborda o tema, ampliando-o para o contexto brasileiro e analisando o clima de final de campeonatos que vivemos hoje.
Confira a entrevista com o especialista:
IHU On-Line - Qual a relação entre religião, futebol e sociedade de risco?
Clodoaldo Gonçalves Leme - Em primeiro lugar, não se pode negar que a religião e o futebol são dois fenômenos arraigados na cultura brasileira. Podemos perceber situações que demonstram estes aspectos de Norte a Sul do Brasil. A sociedade de risco, seria uma fase que estamos passando, em que o velho não passou e novo não chegou. Sociedade de risco é uma era de desequilíbrio, de incerteza, de instabilidade, percebidas, principalmente, pelo desemprego ou empregos precários, desestrutura familiar, degradação do Meio Ambiente etc. Então, a relação se dá da seguinte maneira: tendo em vista a presença significativa de manifestações de religiosidade entre atletas, nos times, entre técnicos de futebol e demais integrantes da comissão técnica - e segundo a opinião de muitos deles, de que a fé potencializa o desempenho esportivo -, uma crença religiosa pode ser um fator decisivo para esses colocarem em um contexto as chamadas "situações de risco" vividas em suas trajetórias, na sua vida dentro do mundo do futebol e na sua vida particular.
As manifestações de religiosidade no futebol são fruto do risco vivido por seus participantes
O capitalismo moderno se insere no futuro ao prever lucros e perdas - ou seja, ao "apostar no risco" - continuamente. Neste sentido, dentro do ambiente do futebol - que não é profissionalmente dos mais estáveis -, o atleta, além de ter de enfrentar os riscos do capitalismo, do "mercado futebolístico", sofre também os riscos do seu meio de atuação. Assim, não estando bem fisicamente, tecnicamente, taticamente, emocionalmente - fatores que determinam seu rendimento - o risco de ser descartado é grande, pois a competitividade é acentuada. O ambiente do futebol proporciona uma busca real de respostas por meio do transcendente. Assim, as manifestações de religiosidade no futebol são fruto do risco vivido por seus participantes. Elas são evidenciadas materialmente por esse esporte ser um "grande espetáculo".
IHU On-Line - Por que a religião tem um papel de destaque na vida dos jogadores de futebol?
Clodoaldo Gonçalves Leme - Não há como negar que todos os seres humanos estão sujeitos a falhas, seja por meio de pensamentos ou de ações. Mas, ao aumentar o risco, cresce a inclinação ao erro, pois a probabilidade de sofrer pressões e, assim, se desestruturar emocionalmente, é enorme. Nem todos possuem uma integração psicofísica capaz de suportar algum impacto, seja ele positivo ou negativo. O futebol é um esporte espetacular e de grandes riscos. Quem nele atua não pode considerar a hipótese de erros, pois eles podem causar grandes estragos. A obrigação do batedor de pênalti é fazer o gol. A do goleiro, ainda que com menores chances de sucesso, é defendê-lo. Muitas vezes, o equívoco provoca catástrofes. Isso deve ser evitado a todo custo. No mundo do futebol, o erro, além de prejuízos individuais, pode trazer risco ao patrimônio do clube e à integridade física dos profissionais do esporte (depredações, arremesso de objetos, brigas entre torcidas, invasões de gramados etc). Há seres humanos que pensam que podem tudo e, portanto, desejam fazer tudo. Tal atitude implica no estabelecimento de uma verdadeira fonte de riscos.
Fatores subjetivos motivam a busca do "divino"
Se um "funcionário da bola" deixa de jogar uma partida importante acarreta uma crise, que implica em multa para o ausente, críticas e cobranças pela mídia e, principalmente, por torcedores revoltados com os "danos" causados ao espetáculo. O fato de o atleta entrar em campo é outra situação de risco, pois, se ele não desempenhar um bom papel, não saberá o que o esperará depois. Esses fatores estão no campo da subjetividade, mas a sociedade de risco exige formas de ações objetivas. O que fazer então? Buscar a ajuda do "divino"? Sim! Como percebi nas entrevistas que realizei, e no decorrer da construção da dissertação, a situação de risco existente no ambiente do futebol profissional (e fora dele também) motiva seus participantes a se manifestar religiosamente.
A busca da religiosidade funciona como um "bálsamo" na vida dos "personagens" do futebol
A busca da religião, da religiosidade, funciona com um "bálsamo" na vida dos "personagens" do futebol. Muito interessante também é relatar o seguinte fato: a análise do desenvolvimento histórico do futebol e de sua relação com a religiosidade mostra inicialmente que, em todos os locais e períodos em que esse esporte floresceu, foram constatados os aspectos do risco x espetáculo x religiosidade. Por meio da observação das instituições e dos indivíduos, percebi a estreita ligação entre cada um desses aspectos, bem como suas derivações, entre as quais se conta o uso de um "marketing religioso futebolístico". Há momentos em que o indivíduo divulga uma "marca" religiosa por sua própria conta, para expressar sua crença religiosa e, também, a instituição religiosa a que pertence. Em outros momentos, é a instituição religiosa que faz uso do indivíduo para promover seus produtos. Considerando o papel da religião como mecanismo regulador do estresse social e da pressão do meio sobre o indivíduo, podemos dizer que o marketing religioso no futebol se enquadra no modelo de sociedade de risco e de sociedade do espetáculo. A religião associada ao futebol reduz a percepção desse risco ao mesmo tempo em que gera uma representação de paz interior e segurança do indivíduo face ao meio em que ele está inserido. A mescla futebol x religião produz uma verdadeira "potência de espetáculo".
IHU On-Line - E com as torcidas, a religiosidade funciona da mesma maneira?
Clodoaldo Gonçalves Leme - Não pesquisei a fundo o aspecto em torcidas, mas em um estudo específico sobre elas, poderíamos partir do mesmo princípio, levando em consideração que muitas equipes já são objeto de devoção de muitos torcedores, no lugar de sua religião. Os hinos das equipes seriam os cantos religiosos, os atletas "consagrados" seriam os santos, o momento do gol, seria o momento de êxtase, e outras muitas aproximações podem ser feitas simbolicamente.
IHU On-Line - Tomando exemplos práticos desta relação, seja no jogo que tornou o Grêmio campeão da Série B, no sábado, dia 26 de novembro, ou em qualquer decisão de campeonato, ouve-se e lê-se na mídia expressões como "foi um milagre". Como isso funciona no imaginário popular? Deus toma partido no futebol?
Clodoaldo Gonçalves Leme - Há um capítulo em minha dissertação, onde há um subtítulo denominado A leitura religiosa do futebol na mídia. Ali detectei que a presença de notícias do futebol ligadas ao sobrenatural nos meios de comunicação são mais evidentes em fases finais de campeonatos, nas quais as equipes podem alcançar o "céu", ou seja, o título de campeão (ou as melhores classificações). O "purgatório" das classificações intermediárias, que não rebaixam o clube, mas que também não agradam a torcida. E o "inferno", representado pela queda de divisão ou pela perda de um título. Percebi também que ações diferenciadas de atores do meio futebolístico são utilizadas pela mídia como elemento de aproximação face ao universo religioso. Nesse caso, certas atitudes se tornam "pecados", certas vitórias,"milagres", e certos indivíduos, "santos" (o melhor exemplo é o goleiro do Palmeiras no ano de 1999, quando a equipe conquistou a Copa Libertadores da América: "São" Marcos).
"O fator diversidade religiosa nos campos de futebol é confirmado por minha pesquisa"
Referente ao imaginário popular e às preces dos gaúchos e dos pernambucanos, vale ressaltar que o Brasil é um país de crenças diversificadas - participam do mesmo jogo católicos, evangélicos etc. Há uma grande relação com o transcendente e isso é uma estimulação benévola na visão de muitos participantes do futebol. Todos pedem e agradecem: um ganha, outro perde. Se não houver uma fé ingênua, algo de bom há de ser extraído de qualquer resultado, principalmente da derrota, onde as crises e as buscas por explicações são maiores. O fator diversidade religiosa nos campos de futebol é confirmado por dados obtidos na minha pesquisa referentes à afiliação do indivíduo a alguma religião e também a denominação religiosa com que ele mantém vínculo. Sobre a relação com o transcendente ser um estímulo benéfico, mesmo os que acham que não há uma ajuda direta consideram, indiretamente, que ela pode influir positivamente em alguma esfera.
O que determina o resultado de uma partida é a combinação de técnica, tática, físico e emocional
Também não há dúvidas sobre a importância dos pedidos de orações e agradecimentos diante das incertezas dos resultados, pois, quando se aumenta a pressão em favor de se atuar frente às situações de risco, os integrantes de comissão técnica e atletas fazem seus pedidos e, depois do desfecho da situação, seus agradecimentos. Por fim, o que determina o resultado de uma partida é a combinação dos fatores: técnico, tático, físico e emocional. Quem estiver melhor vence. A crença ajuda, e muito, mas não adianta crer e não treinar. Um fator completa o outro, lembrando que é impossível provar que um tenha mais fé que o outro. Isso é subjetivo.
IHU On-Line - O seu mestrado fala do futebol profissional paulista, mas os resultados encontrados pelo senhor podem ser entendidos como um comportamento brasileiro?
Clodoaldo Gonçalves Leme - Não tenho dúvidas sobre isso, principalmente pelo "trânsito" existente entre atletas e integrantes de comissões técnicas nas equipes. Profissionais relataram as manifestações de religiosidade como algo impossível de não ser realizado em qualquer ambiente do futebol, por mais que existam técnicos que apenas tolerem este comportamento.
IHU On-Line - Como funcionou a sua pesquisa?
Clodoaldo Gonçalves Leme - Procurei investigar as manifestações de religiosidade no futebol profissional paulista. Dentro do universo de pesquisa, escolhi cinco equipes que disputam a primeira divisão do campeonato estadual (Sport Club Corinthians Paulista, Santos Futebol Clube, Sociedade Esportiva Palmeiras, São Paulo Futebol Clube e Associação Desportiva São Caetano). Os principais motivos da escolha dessas equipes foram o grande espaço a elas atribuídas pelos meios de comunicação, o fato de serem de "massa" ou "emergentes" e também por serem o objeto de desejo de atletas iniciantes e de profissionais consagrados do futebol. Busquei trabalhar em duas linhas: uma de caráter teórico-bibliográfico e a outra de caráter empírico. Para compreender o porquê das manifestações de religiosidade no futebol empreguei a teoria da Sociedade de Risco, de Ulrich Beck, e elementos da Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, que foram essenciais para a dissertação. A aproximação das teorias risco/espetáculo em relação à realidade brasileira e, principalmente, ao "esporte das multidões", em conjunto com a pesquisa de campo (realizada com vinte personagens do futebol), permitiu-me concluir que o risco é um dos grandes motivadores das manifestações de religiosidade no futebol. Ou seja, o espiral risco/espetáculo, fruto do sistema sócio-econômico capitalista, competitivo e excludente, é determinante para a compreensão do meu trabalho.
(Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br Acesso em 12 de setembro de 2009)